“Vingança é querer que o outro sofra o que você sofreu” Fabrício Carpinejar
“CONHEÇO VOCÊ DE ALGUM LUGAR”
Desde que cheguei a Belo Horizonte, os mineiros me tornam mineiro avisando que existe alguém parecido comigo em sua família ou no seu círculo de amigos.
“Mas você é a cara do tio Luquinha!”
“Fala igual ao nosso primo Rubens!”
“É a mesma risada do Raul, nosso colega do trabalho.”
Não bastando a identificação pelo retrato falado, ainda procuram imagens no celular para me mostrar e comprovar as semelhanças.
Analiso os traços e vejo ou a careca, ou a falta de sobrancelhas, ou os olhos caídos, ou os óculos graúdos, ou o rosto ovalado. Há em todos os casos uma característica irmanada.
Não é um conjunto da obra igual, e sim um traço marcante em comum.
Sou aquele tipo que todo mundo conhece de algum lugar.
Minha vontade é desacreditar a lembrança, alegar que a pessoa não tem nada a ver comigo, que se trata de um engano, para livrá-la das pechas e preconceitos da minha feiura.
Vingança é querer que alguém sofra o que você sofreu. Empatia é não querer que o outro sofra o que você já sofreu.
Não me interesso em dividir o bullying. Já basta o que passei e não desejo o mesmo para mais ninguém.
No fundo, entendo o esforço do mineiro de produzir semelhanças. Inclusive acho um gesto bonito e comovente, um modo de me integrar aos seus afetos, de me inserir em seu passado, de facilitar a convivência.
Aprendi a não misturar dores antigas com novos encontros. Valorizo o hábito local como uma reverência da amizade.
Feio desde a infância, só peço que ninguém diga que os meus filhos são parecidos comigo. Devo ser o único pai que não se sente mal por transferir os créditos e a carga genética inteiramente para a mãe.
Até porque lembro que eu não era comparado fisicamente ao meu pai ou à minha mãe — poupavam os meus genitores da herança inversa. Sempre fui parecido com os demais, longe de casa. Todo feio é órfão de traços.
Já notei, ao longo da vida, que terei mais sósias do que alguém formoso. É natural que surjam um DJ, um motorista de táxi, um esportista similares. Eu me acostumei à ubiquidade, a estar em dois lugares ao mesmo tempo, ainda que não seja eu.
O feio conta com uma multidão de dublês, porque logo se torna uma caricatura, uma figura unidimensional, não desfrutando da riqueza das virtudes, dos detalhes particulares e únicos da atração.
É padronizado por algum defeito. Ou o nariz adunco, ou as orelhas grandes, ou o semblante torto, ou a ausência de queixo. A feição é esquecida devido a um problema ampliado com lupa.
Mas não tenho do que reclamar. Jamais mergulharei no vitimismo para me afogar.
Sobram vantagens e bônus com a minha situação facial.
Um dia, quem é bonito vai envelhecer e se enrugar por completo. O feio nasce acabado e não pena com a radicalidade das transformações nem com a terceira idade.
A beleza dura pouco, o feio dura para sempre. E o feio nunca será belo, mas ele é o único que pode ser adorável pelo seu senso de humor.
*DA REDAÇÃO SAG. Texto originalmente publicado no O Tempo.