Às vezes a gente não fica por amor, e sim pela falta do amor
Catarina carregava diversas mortes dentro dela. Seu olhar enlutado, olhos verdes marejados de ausências e dor, atraía homens e mulheres. Era cortejada, e seduzia pelo simples movimento de existir. Desejavam sua angústia, suas lágrimas e seu corpo.
Por trás das gentilezas veladas, havia um consenso silencioso, uma disputa muda pelo coração da mulher de meia idade, cujo maior atrativo era o caos que carregava, a dor indecifrável, as pálpebras borradas de rímel misturado à lágrimas, o vício em vodca e noitadas.
Algumas mulheres, movidas pelo ciúme, diziam que Catarina tinha enlouquecido após a morte do filho. Mas quem a conheceu antes da tragédia, garantia que ela já era assim, uma mulher que seduzia pela marca da dor, como se precisasse de colo e cuidados, tão frágil e indefesa que o simples fato de respirar requeria atenção.
O caos de Catarina era sedutor. Dizem que somos atraídos por características que existem no outro e refletem algo nosso. Assim, já que todos carregamos dores e vazios, a demonstração explícita de silêncio e faltas em Catarina era inegavelmente atraente. Havia uma necessidade de organizar sua bagunça, oferecer-lhe abrigo, pegá-la pela mão e ampará-la; mas ela já tinha alguém, e Cícero era um homem tão bom!
Será que todas as nossas dores advêm somente do que foi vivido, ou carregamos feridas e solidões ancestrais, passadas de geração em geração, que latejam nas horas mais improváveis, por motivos aparentemente banais?
Nem tudo mora no visível, ela sabia. E, para se curar, era preciso acessar dores que não se podia tocar, memórias de tempos não vividos, histórias de guerras ancestrais. Era preciso soprar queimaduras que marcaram gerações e tratar feridas causadas pela permanência de exércitos em desertos afetivos.
Às vezes a gente não fica por amor, e sim pela falta do amor. Aquilo que se mostra mais conhecido, o que nos mobiliza, o que cutuca nossa pele e reabre nossas feridas, parece ser o mais certo.
Como um estilete cortando a pele, escolhemos o amor mais difícil, mais doloroso, mais compatível com nossas angústias tão familiares.
Catarina se automutilava, e Cícero lambia suas feridas. Mas não era o amor de Cícero que ela queria. Ela desejava alguém que ardesse como ela, que entendesse seu caos e abandono, alguém que de certa forma a abandonasse também. Ainda não encontrara esse alguém, pois todos queriam permanecer e cuidar dela.
Decidiu, então, ela mesma se abandonar. No princípio parou de lavar o cabelo. Aos poucos foi deixando de comer, tomar banho, levantar da cama. Porém, numa manhã em que mal conseguia abrir os olhos, seu quarto foi invadido por visitantes ilustres. Eram as mulheres que a antecederam, mulheres que corriam em suas veias e sabiam de cada uma de suas fragilidades. Suas ancestrais, avós e mães de sua mãe, estavam ali para pedir que se levantasse, que sua cura fosse a cura delas também.
Então, assim como ela mesma havia decidido se abandonar, descobriu que só dependia de si mesma ser seu próprio abrigo. Mas não é de uma hora pra outra que a gente muda. Não é de uma hora pra outra que a cura vem. A mudança é processo.
A cura é processo. E ela teria paciência com seu tempo. Ela faria isso por si. E também por todas aquelas que um dia a antecederam…
*DA REDAÇÃO SAG. Foto de pure julia na Unsplash.