Que sociedade emergirá depois de tanta dor causada pela pandemia?

A crise atual, causada pela pandemia do novo coronavírus, nos força a compreender dois conceitos bastante importantes: a imprevisibilidade e a vulnerabilidade.

Nem o mais competente e bem preparado dos administradores previu em seu “worst-case scenario” este tão potente, absoluto, grave e devastador acontecimento.

Estamos todos, das grandes potências mundiais aos países mais pobres, de joelhos.

Imprevisibilidade é só o que podemos prever.

Na matemática da sociedade brasileira, 6 = 105.000.000. Segundo relatório da Oxfam, seis brasileiros juntos possuem mais dinheiro que a metade mais pobre da população dos quase 210 milhões de brasileiros. Entre esta parcela da sociedade, mais de 50 milhões (sobre)vivem com menos de US$1.50 por dia, ou seja, eles, por dia, têm – para se alimentar, se vestir, se deslocar, se educar e se medicar – o valor equivalente a uma Coca-Cola.

Mas esta meia dúzia de bilionários e os 105 milhões de pobres e miseráveis, têm ao menos duas coisas em comum: ambos são brasileiros e ambos podem morrer com a Covid-19.

Não importa quão ricos, quão bem formados, quão influentes, quão famosos ou poderosos sejamos, podemos morrer nas próximas semanas.

Infelizmente, os mais pobres, provavelmente, serão os que sofrerão o impacto de forma bem mais agressiva e profunda. Ninguém jamais esteve garantido, mas estamos todos mais assustados, porque com o novo coronavírus, nossa vulnerabilidade ficou bastante mais evidente.

Se a imprevisibilidade e a vulnerabilidade do novo coronavírus nos trouxeram insegurança, desconforto e medo; se o vírus nos aproximou da dor e da morte, também trouxe – pelo menos, para os que desfrutam da segurança de fazer home office – algo que sempre quisemos e nunca pudemos adquirir: tempo.

Quem mora em uma grande cidade brasileira e trabalha em função executiva por exemplo, com o isolamento social, trabalhando em casa, economizou bastante tempo no deslocamento, no trânsito pesado de ida e volta ao trabalho, e de ida e volta a clientes e fornecedores.

Ganhou o tempo da longa espera em recepções e das reuniões improdutivas.

Economizou o tempo das fofocas e conchavos no cafezinho e também a espera na longa fila do restaurante.

Juntando tudo, alguns terão economizado facilmente 4 horas por dia, que, agora, precisam ser redistribuídas entre as tarefas domésticas, o cuidado com os filhos e outras atividades que, muitas vezes, eram terceirizadas.

Se, como previu o ex-ministro da Saúde Luiz Mandetta, até setembro permaneceremos fora da normalidade, no exemplo acima, a pessoa terá ganho algo entre 400 e 600 horas úteis a mais; ou seja, ganhamos algo como 50 a 70 dias úteis a mais no período.

É muito tempo. Esse talvez seja o bônus mais precioso que ganharemos em toda a nossa curta vida.

Qual seria o investimento de menor risco e maior retorno onde deveríamos aplicar esse tão valioso bônus?

Chega de autoengano

Um bom uso desse bônus pode ser empregar o tempo ganho em nosso crescimento pessoal e também em nosso crescimento como sociedade.

E como se faz isso?

Os gregos, há cerca de 2.500 anos já sabiam como. A fórmula foi inscrita no templo de Delfos:

“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.”

A ela, podemos juntar outra frase inspirada, do igualmente grego Sócrates:

“Eu só sei que nada sei, e o fato de saber isso, me coloca em vantagem sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa. Modéstia é requisito prévio para o autoaperfeiçoamento.”

Estes, cerca de 50 dias que ganhamos, nos obrigarão a conviver intimamente e intensamente com uma pessoa: nós mesmos.

Teremos que nos entender com esse personagem instável e de dupla personalidade, que por vezes é nosso maior amigo e por vezes, é nosso pior inimigo.

Deveríamos aproveitar esse ganho de tempo, para iluminar nossos mais profundos abismos com perguntas contundentes:

O que tenho feito?

Estou satisfeito com a vida que tenho me dado?

O que defendo é o melhor para a humanidade ou é meu egoísmo e minha mesquinhez defendendo apenas, e sempre apenas, o que creio ser o melhor para mim? E se for esse o caso, isso tem trazido resultados que me fazem bem? Estou em paz? Feliz?

Quanta dor meu “sucesso” tem causado a mim, aos de meu entorno e à humanidade?

Tenho sido digno de minha vida?

Ao morrer, minha vida terá sido significativa ou terei vivido uma vida placebo? Ou ainda pior, terei tido uma vida cáustica?

O que em mim posso mudar de modo que eu possa ajudar na mudança da humanidade?

E por que não mudo? O que me falta para agir em coerência com o que prezo e acredito?

Na correria do dia a dia, poucos de nós achamos tempo para pensar em nossas vidas. Perguntas como essas, por sua importância, deveríamos nos fazer a todo momento, até a nossa morte. E se necessitamos de modéstia para nos questionar, igualmente necessitamos de sinceridade e honestidade nas respostas.

Uma crise de tal dimensão deveria nos motivar a parar de enganarmos a nós mesmos.

Chega de autoengano.

Triste daquele que não pode confiar nem em si, pois se sabota, e na autoilusão, vive longe da satisfação, da paz e do progresso que poderia obter ao, de fato, se (re)conhecer.

Faz tempo nós sabemos

Faz tempo nós sabemos do desmatamento, da poluição, do aquecimento global, da morte dos corais e das consequências do degelo das calotas polares.

Faz tempo nós sabemos da pesca predatória que devasta oceanos, do mercúrio nos peixes e do plástico matando tartarugas.

Faz tempo nós sabemos dos defensivos agrícolas que causam câncer e matam abelhas.

Faz tempo nós sabemos o tamanho do lixo que produzimos todos os dias.

Faz tempo nós sabemos dos problemas causados pelos alimentos ultraprocessados e que o excesso de sal, açúcar, gordura e carne, nos são prejudiciais.

Faz tempo nós sabemos do mal causado pelo cigarro, pela bebida alcoólica e pelas armas.

Faz tempo nós sabemos da pedofilia, do estupro, do feminicídio e da violência contra a mulher.

Faz tempo nós sabemos de empresários e executivos que corrompem, e de políticos corruptos.

Faz tempo nós sabemos dos juros de 150% ao ano cobrados nos empréstimos versus os 4% de juros pagos quando investimos nossas economias.

Faz tempo nós sabemos do desumano trabalho análogo ao escravo nas grandes fazendas.

Faz tempo nós sabemos de margens astronômicas em medicamentos patenteados, que já se pagaram há muito.

Faz tempo nós sabemos da vergonhosa mercantilização da fé.

Faz tempo nós sabemos de médicos que assinam seus plantões enquanto estão em seus consultórios.

Faz tempo nós sabemos dos preconceitos étnico, social, de origem geográfica, religioso, de gênero e contra os homossexuais.

Faz tempo sabemos de muita coisa. E igualmente faz tempo que nada ou quase nada fazemos para mudar essas coisas.

Saber, tomar ciência, pode ser um bom primeiro passo, contudo, já não é mais suficiente.

É bom viver assim?

Estamos satisfeitos com esta nossa sociedade?

Sim, nossa sociedade, não apenas porque nela vivemos, mas também porque por ação ou omissão, avalizamos e reforçamos sua rota.

A pergunta é:

Quanto temos feito para mudar o famoso ‘tudo isso que está aí’?

Nós, os incomodados, nos mudaremos

Aqueles que utilizarem seu bônus de tempo para refletir sobre suas vidas e a sociedade em que vivemos, ficarão positivamente incomodados.

E esses talvez, possam dar um novo significado àquela velha frase egoísta: Os incomodados que se mudem!

Exato, nós, os incomodados, ficaremos e nos mudaremos. E mudando a nós mesmos, mudaremos nosso entorno. E a soma dos entornos modificados mudará o mundo!

Deixaremos de passar pelo acostamento. Devolveremos o troco errado da padaria. Deixaremos o apressado passar a frente no metrô.

Sorriremos mais, agradeceremos mais, seremos mais gentis.

Teremos a tranquilidade que nos permitirá não vencer todas as disputas.

Teremos a tranquilidade que nos permitirá não mais disputar, mas colaborar, contribuir e construir. Compreenderemos que o mundo não é dos espertos ou dos ricos. Ao menos o mundo que construiremos não será apenas deles, e sim de todos nós.

Na verdade, daremos um novo significado à esperteza. Assim como ficou brega fumar, ficará brega levar vantagem. Haverá constrangimento social a nos impedir de sermos espertinhos, de darmos um nó, de passarmos a perna no outro.

O novo esperto será aquele que quer o bem do outro. Esse já terá compreendido que, só assim, ele também será beneficiado e terá paz.

Mísseis valem menos que sabão de cozinha

A pandemia, após muita dor, morte e crise econômica, passará. Mas, após a crise da pandemia, seguiremos tendo o Brexit?

Seguiremos com os altos muros de Israel e dos Estados Unidos?

Seguiremos tendo a robusta muralha da injustiça social no Brasil?

Restarão aviões lotados de famílias algemadas sendo deportadas?

Emigrantes seguirão morrendo ao cruzar mares?

Crianças continuarão a passar a infância ao som de bombas?

Seguiremos investindo mais em armamento que em saúde, educação e combate à fome?

Quem separa o homem do homem é o homem. O vírus, que ironia, não faz distinção alguma.

Ele não respeita fronteiras, não reconhece castas ou eleitos de Deus e as cercas não o detém. Os caças mais rápidos, as bombas mais letais e os misseis de maior alcance, nenhum deles consegue nos proteger de um vírus que, de tão pequeno, não pode ser visto ao microscópio comum e de tão “frágil”, pode vir a morrer ao contato com a espuma de um reles sabão de cozinha.

Adoeceremos para mudar?

Não é incomum alguém gravemente enfermo, que passa perto da morte, ao recuperar-se, voltar diferente.

Repensa seus valores e o significado de sua vida.

Mesmo que não adoeçamos, não seria esta nossa parada obrigatória uma excelente ocasião para repensarmos nossa existência e a sociedade que criamos?

Se a vida é imprevisível e se somos absolutamente vulneráveis, há sentido em comportamentos nossos como a arrogância, a vaidade, o orgulho, o egoísmo, o sectarismo, a xenofobia, o machismo, a homofobia e os preconceitos de todo gênero?

Tudo isso tem nos separado e machucado a todos.

De que nos serve?

Faz sentido seguirmos na busca febril por poder, dinheiro e fama se existe a possibilidade, bastante real aliás, de não voltarmos mais ao escritório por não termos resistido ao vírus?

Vários morrerão. Estaremos entre esses?

Ninguém gosta de pensar na morte iminente, mas obviamente todos morreremos. De que importarão as metas, a competitividade, a rentabilidade, o engajamento, a meritocracia e a disrupção, quando nossa vida depende de um respirador artificial que está em falta?

Botox ou parto?

Ao final da crise provocada pela pandemia teremos decidido, como sociedade, como queremos seguir. Pode ser que sigamos como temos vindo até aqui, com uma sociedade profundamente injusta, imoral, consumista, falsa e egoísta, onde campeiam o individualismo, a agressividade, a infelicidade, a depressão e o suicídio.

Se estivermos muito abatidos, como sociedade, mudaremos uma coisinha ou outra. Aplicaremos algum botox para disfarçar nossa decrepitude quem sabe fundando mais um instituto ou criando mais uma ONG.

Ou podemos seguir por outro caminho e resolver que basta.

Podemos finalmente tomar coragem e decidir que essa não é a sociedade que queremos e que compete a cada um de nós modifica-la. E, então, partiremos da simples ciência do erro para a correção do mesmo.

Será uma sociedade onde cada um cuidará de emendar-se e se responsabilizará fortemente, também por agir de forma efetiva na promoção da melhora da humanidade. Se assim decidirmos, veremos um enterro e um parto.

O enterro do velho homem parte de uma sociedade insustentável e em franca decomposição.

Será o fim de uma sociedade que já não mais atende as aspirações de uma humanidade que anseia e está pronta para algo melhor, uma renovação. E assistiremos também a um parto; o nascimento de uma nova sociedade mais justa, mais fraterna e mais serena. Uma sociedade pautada por um novo contrato social, que de fato promova o bem de todos, onde todos compreendamos que o bem de cada um é nosso maior ou único interesse.

O vírus nos dá um ultimato e dá também algum tempo extra para que pausemos, reflitamos e, tomara, retomemos a razão. Talvez, o que nos faltasse, fosse um tranco mais duro para que saíssemos da letargia. Não falta mais.

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Alexandre Caldini é autor do livro "Networking versus Notworking" , "A vida na visão do Espiritismo", e "A morte na visão do Espiritismo. Formado em Administração de Empresas pela PUC de São Paulo, Caldini fez vários cursos de educação executiva em universidades de prestígio como Harvard e MIT nos Estados Unidos, Insead na França, e Cambridge e London Business School na Inglaterra. Foi Presidente do Grupo Abril e Revista Valor Econômico.