SAUDADES, MÃE, DE DESABAR NO SEU COLO
Bença, mãe! Eu pedi a um anjo para ler essa carta para a senhora. Eu disse a ele para traduzir algumas palavras porque a senhora não foi alfabetizada. Falando nisso, mãe, me perdoe por não ter insistido em alfabetizá-la, depois de adulta.
Me corta o coração pensar que lhe roubaram o direito de ler e escrever só porque a senhora era canhota. Como doi pensar que a senhora ficava de castigo e apanhava de palmatória por não conseguir escrever com a mão direita.
Não foi à toa que senhora passou a sentir desconforto perto de pessoas “letradas”. Pois é, por ironia do destino, a sua filha se encantou pelo mundo das palavras e já tem um livro com o nome dela na capa, mas ela continua com o mesmo coração que a senhora conheceu.
Acho que, inconscientemente, eu esperei a senhora partir para poder dar vazão a esse dom.
De certa forma, eu me sentiria culpada ao me revelar escritora sabendo que a senhora teve traumas profundos envolvendo a sua relação com a tentativa de se alfabetizar.
Sim, mãe, isso foi uma forma de me solidarizar com a sua história, com a sua dor.
7 anos depois da sua partida, eu escrevi um texto falando sobre a dor que era viver sem a senhora e, sabe quem leu a mensagem, mãe?
Aquele moço de cabeça branca que a senhora teimava que era pai do William Bonner, o Cid Moreira, acredita?
É lindo, mãe, aquela voz dizendo: “suor de mãe tem cheiro de amor”. Eu me acabo de chorar todas as vezes em que assisto. O título do texto é Despedir-se da mãe é sepultar um pouco da gente.
Mãe, escrevo essa carta ao lado de duas gatas que eu adotei, a Mel e a Bia. Elas se parecem com os gatos que tínhamos na roça, na minha infância.
Tê-las comigo é uma forma de sentir a sua presença, pois a senhora me ensinou a amar e respeitar os animais. Eu vejo a senhora em vários contextos: nas plantas, nos tecidos florais, nas árvores floridas, principalmente os flamboyants e os ipês, nas músicas caipiras antigas.
Aqui dentro existe um baú de memórias sagradas sobre nós duas, mãe.
Uma lembrança favorita é a de nós duas regando a horta na beira do rio, lá pelos meus 8 ou 9 anos. Aquelas manhãs lindas ensolaradas, os raios de sol espelhados na água, e nós duas jogando água nas hortaliças com uma cuia de cabaça. Ah, e aquele cheiro que subia…de coentro e cebolinha.
Todos os dias, eu paro por um momento e penso na senhora. Sinto vontade de compartilhar alguma coisa, de ouvir algum conselho, ou apenas sentir a sua presença amorosa.
A senhora sempre sabia como eu estava, mesmo quando eu tentava disfarçar. Eu sinto falta de alguém que me enxergue além do que pareço ser, isso só a senhora conseguia.
Saudades de desabar no seu colo, sentindo as suas mãos com cheiro de ervas acariciando os meus cabelos. Ah, falando em cabelos, a senhora sempre fez questão de dizer que os meus fios eram grossos, pesados e fortes como os seus. Eu via o quanto se orgulhava disso. Saiba que eu amo ter herdado parte da sua genética.
E meu pai, mãe, como ele está? Quando viajo de avião, eu fantasio que estou indo visitar vocês, no céu. Eu os imagino me esperando em frente a uma casinha bem simples e aconchegante; sentados embaixo de uma árvore, num banco de madeira, rodeados com todos os gatos e cachorros que tivemos um dia. Há um bule de café e bolo brevidade.
Mãezinha, eu estou bem, me sinto realizada com as escolhas que fiz. Muita coisa mudou depois da sua partida, eu reiniciei a minha vida.
Eu quero agradecê-la por ter me dado a vida; por ter me amamentado; por ter sido a melhor mãe que a senhora conseguiu ser. Não há nada que eu precise perdoá-la, tudo foi como tinha que ser.
Eu te amo até o infinito, mãezinha. Fica com Deus. Dá um abraço no meu pai, diga que eu o amo demais. Até um dia.
*DA REDAÇÃO SAG. Foto de Abenezer Shewaga no Unsplash
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